Não me lembro quando começaram a tratar os velhos por idosos. Deve ter sido quando as pensões de reforma emagreceram tanto que não chegavam para os remédios, a comida e os transportes da velhice. Quando as acções são insuficientes muda-se a palavra. A palavra designa o respeito que a sociedade portuguesa tem pela gente com idade. Um velho é coisa aborrecida e socialmente anaceitável, muito custosa de pagar, inútil, enquanto um idoso é um ancião que foi entrando em anos e em idade maior abençoado pela sapiência. A dignidade conferida à palavra autoriza o idoso a tomar conta de si mesmo e a custar menos ao Estado. O velho para ali está, um empecilho arrastando-se pelas urgência dos hospitais, as saletas de fórmica dos centros de saúde, os bancos dos jardins e dos centros comerciais. Em dias de futebol, os velhos do sexo masculino costumavam sentar-se num banco do shoping Amoreiras em Lisboa a olhar para os plasmas da loja Sony, como quem se senta no clube a jogar damas e dominó com os amigos. E assim poderiam ter chegado a ver o golo em alta definição, quando o momento viesse, embriagados com a luz dos ecrãs. O pior é que aquilo dava mau aspecto ao shoping e foi-lhes retirado o poiso, numa das cosméticas do shoping, dessas que agora se chamam "mudança de visual". Os velhos foram à vida. Nunca poderiam fazer isto a um idoso, porque um idoso é uma estátua monumental.
Alguns velhos resistem ainda, encostando-se às esquinas do templo, quer dizer, do centro, apoiando-se ora num pé ora noutro, coçando a cabeça, empurrando as paredes do corredor com os ombros. As pernas não são o que eram e a posição é incómoda. Os velhos debandaram. As velhas do sexo feminino não ligam à bola, delas é o reino dos céus da telenovela e da televisão para senhoras, com muitos anúncios de detergentes e pensos higiénicos. O único poder que resta às velhas em Portugal é o de comandarem a programação das televisões em primetime, o que é fenómeno de estranhar visto que as velhas têm uma pensão de reforma mínima e nem dinheiro para os detergentes têm. E quanto aos pensos higiénicos... As velhas duram mais do que os homens e administram melhor as doenças múltiplas, que acarinham com o cuidado com que trataram dos filhos. Andam muito pelas farmácias e entretêm-se umas com as outras a discutir marcas de medicamentos, consultas, tratamentos e radiografias. Nas urgências não se importam de ficar horas nas salas de espera à espera de uma injecção, ainda acreditam nos milagres da "injecção". Não têm mais nada para fazer. Às vezes, a família esquece-se delas lá, não as vai buscar, o meu filho desapareceu vai para cinco horas, não sei o que é feito da minha nora, etc., já lhes telefonei e eles não atendem, e andam pela sala de espera a pedir dinheiro para um táxi ou ajuda a quem por ali anda, que lhes chame um transporte, qualquer coisa. Às vezes estão mesmo muito doentes, daquelas doenças lentas e crónicas e pesadas da velhice, sem esperança e sem redenção, doenças que comem os ossos e a pele, atravancam o andar, e fazem dos velhos uns fantasmas. E quanto mais doentes estão mais a família se faz escassa e se esquece deles. Se houvesse um costume tribal de colocar os mais velhos e mais fracos junto a uma árvore anciã para poderem morrer de fome sozinhos e com dignidade, já que não podem acompanhar a tribo e só a retardam, era uma vantagem. Em África faziam isso. Assim se dava ao velho a dignidade de um ancião, igual à da árvore, em vez de o abandonar num hospital sem morada nem identidade certa. Se os velhos fossem só números é que era bom. Dos números gostam os governos. Enquanto tiram com uma mão, o euro, o IVA, a inflação, o preço do barril de petróleo, o défice e etc. acabam sempre por dar cabo dos mais pobres primeiro, com a outra mão prometem benesses e complementos, bem-aventuranças de anos eleitorais. Títulos de pequenos tesouros, mais 100 euros para aqui, mais 50 euros para ali, que por sua vez serão sugados pela conta da farmácia e pela receita do médico da Previdência que faz o gosto aos laboratórios e é generoso na recomendação. Os velhos, talvez por ser idosos, têm hoje milhares de produtos farmacêuticos destinados a prolongar a sua velhice e a sua doença, até ao momento terminal que se chama morte e que ninguém quer dizer. A palavra morte torna-se proibida nas sociedades de bem-estar. Os velhos para aqui andam, de um lado para o outro, as velhas choramingando muito, ladainha de viúvas solitárias. No outro dia, no Príncipe Real, uma velha idosa e magra rapava o fundo dos cabazes da fruta e das cenouras biológicas (vive-se mais) que uma santa alma lhe ia oferecendo para ela comer. Leve o que quiser. A velhota chorava, e devia ter frio porque não tinha quase nada vestido. O frio é uma coisa de velhos. E perguntou se havia um pão a mais, não havia. Não há não se come, é da maneira que se fica mais elegante, disse a velha. Fui-lhe comprar um pão. Aquilo estragou-me o dia, fiquei com remorsos vagos de tudo.
Com uma idosa, sem cara e sem fome, tudo seria diferente. Os idosos não pedem e não choram, são uma estatística e um nome.
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