CARTA DO CANADÁ
TRINTA E CINCO ANOS DEPOIS
Fernanda Leitão
O último ano do regime anterior a 1974 foi um sufoco de boatos, prisões, sinais contraditórios, panfletos que corriam a granel garantindo uma revolução, intensa agitação nos sindicatos, os primeiros sinais da vindicta que lá vinha.
Grande parte da culpa era a censura, pontificada por militares, mas não foi dispicienda a campanha de ódio cego movida pela direita salazarista contra a direita marcelista. Nessa altura, por razões óbvias, a esquerda e a direita oposicionista ainda não adivinhavam as profundas fracturas que iriam sofrer nos anos a vir. Havia em tudo um cenário de fim de festa. Era perturbador e excitante.
Finalmente, os tanques da revolta chegaram a Lisboa. Soube-o pelo telefonema de um jornalista era madrugada. Liguei o rádio, as marchas militares eram apelativas e, quanto a mim estranhamente, pedia-se que o povo não saísse à rua. Saí imediatamente, a juntar-me a colegas que, como eu, suspiravam pela queda do regime há muitos anos. Aparecia gente de todos os lados, ninguém segurava o povo. Rapidamente fui informada que se tratava de um golpe militar e que, se corresse tudo bem, os dirigentes políticos exilados entrariam no país dentro de poucos dias.
Gostava de ter vivido aquela jornada com total confiança e absoluta alegria, mas não foi assim. Desagradou-me ver a revolta encabeçada pelos militares, que já tinham feito o 28 de Maio, que tinham sido a guarda pretoriana do regime, contando-se pelos dedos os que tiveram a coragem de erguer a voz contra a ditadura. Não tinha a menor confiança nos dois líderes históricos que viriam do exílio - Mário Soares, pelo PS, e Álvaro Cunhal pelo PC -, velhos compagnons de route que, pouco tempo antes, tinham assinado um pacto em Paris. Na febre daqueles dias apercebi-me que o golpe militar tinha tido motivações corporativas, e não augurei nada de bom. A confusão e o desatino eram completos. Nunca mais esqueci que, ao assaltar os serviços de censura, Manuel Serra, conhecido nos meios do reviralho pelo Manecas das Intentas, achou inteligente e corajoso inutilizar para a História os arquivos daquela sinistra casa ao deitá-los pela janela sobre a populaça que, na Rua da Misericórdia, rasgava os papéis e os pisava. Era o começo da delapidação do património de todos nós. Milhares de pessoas, muitas delas competentes e honestas, foram saneadas com uma selvajaria que só a inveja e o ódio podem explicar, e que era acirrado pela esquerda radical. Com a democracia na boca e serradura na cabeça, deitaram ao lixo um Império de 500 anos, sem honrarem Portugal e sem acautelarem as vidas dos povos das colónias e dos que lá viviam. Armados em Lenines de trazer por casa, destruíram todo o tecido agrícola do sul do país e grande parte do tecido industrial. Impantes, encheram as prisões através dum militar que passava mandados de captura em branco, ele que foi da Legião Portuguesa e choramingou ao pegar nas borlas do caixão de Salazar, um farsante. Muitos dos tropas de baixa patente que abandonaram quartéis e vergonha, nos últimos dias da presença portuguesa em África, vendiam haxixe descaradamente e até o cultivavam nas sua aldeias. Muitos outros, de alta patente, faziam farras em restaurantes de luxo, pagas pelos dinheiros públicos, e sacrificavam motoristas, em noites inteiras e frias, enquanto eles se divertiam em bares da moda. Bastantes, singraram em negócios. Apenas Salgueiro Maia, o militar que comendou a coluna que veio de Santarém e cercou o Quartel do Carmo, se manteve afastado da ganância e da política. Foi um puro. No lado civil, reinava a ambiguidade, que quase desorientou o povo, do relacionamento do PS com o PC, só interrompido por Salgado Zenha, em 1975, com grande entusiasmo geral do país, levando Mário Soares por arrastamento, enquanto Cunhal babava de ódio e mandava "partir os dentes à reação". Como se reagir à maldade e à estupidez não fosse um dever elementar!
Estava dado o mote para o que viria a acontecer nos anos que se seguiram. E nem se hesitou em tirar do caminho Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, homens sérios e dispostos a não confundir Democracia com bandalheira. Aos solavancos, entre lutas partidárias que fedem a milhares de quilómetros e dinheiros de Bruxelas, o regime tem vindo a dar uma no cravo e outra na ferradura. Algum progresso houve, mais aparente do que real, pois ninguém curou de alicerçar fosse o que fosse - como se pode verificar com os efeitos da crise económico-financeira mundial. O papel de embrulho é bonito e vistoso, mas o que lá está dentro é bem menos agradável.
Apesar de tudo, ainda há alguma liberdade. Mas, trinta e cinco anos depois da chamada Revolução dos Cravos, o balanço não é animador. Uma árvore conhece-se pelos frutos que dá. A árvore do 25 de Abril tem ramos mortos, alguns em vias disso, algumas raízes podres, muitos frutos sorvados. Manda o amor a Portugal, e o amor à Liberdade, que o povo pode essa árvore para que ela seja forte e dê frutos bons.
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TRINTA E CINCO ANOS DEPOIS
Fernanda Leitão
O último ano do regime anterior a 1974 foi um sufoco de boatos, prisões, sinais contraditórios, panfletos que corriam a granel garantindo uma revolução, intensa agitação nos sindicatos, os primeiros sinais da vindicta que lá vinha.
Grande parte da culpa era a censura, pontificada por militares, mas não foi dispicienda a campanha de ódio cego movida pela direita salazarista contra a direita marcelista. Nessa altura, por razões óbvias, a esquerda e a direita oposicionista ainda não adivinhavam as profundas fracturas que iriam sofrer nos anos a vir. Havia em tudo um cenário de fim de festa. Era perturbador e excitante.
Finalmente, os tanques da revolta chegaram a Lisboa. Soube-o pelo telefonema de um jornalista era madrugada. Liguei o rádio, as marchas militares eram apelativas e, quanto a mim estranhamente, pedia-se que o povo não saísse à rua. Saí imediatamente, a juntar-me a colegas que, como eu, suspiravam pela queda do regime há muitos anos. Aparecia gente de todos os lados, ninguém segurava o povo. Rapidamente fui informada que se tratava de um golpe militar e que, se corresse tudo bem, os dirigentes políticos exilados entrariam no país dentro de poucos dias.
Gostava de ter vivido aquela jornada com total confiança e absoluta alegria, mas não foi assim. Desagradou-me ver a revolta encabeçada pelos militares, que já tinham feito o 28 de Maio, que tinham sido a guarda pretoriana do regime, contando-se pelos dedos os que tiveram a coragem de erguer a voz contra a ditadura. Não tinha a menor confiança nos dois líderes históricos que viriam do exílio - Mário Soares, pelo PS, e Álvaro Cunhal pelo PC -, velhos compagnons de route que, pouco tempo antes, tinham assinado um pacto em Paris. Na febre daqueles dias apercebi-me que o golpe militar tinha tido motivações corporativas, e não augurei nada de bom. A confusão e o desatino eram completos. Nunca mais esqueci que, ao assaltar os serviços de censura, Manuel Serra, conhecido nos meios do reviralho pelo Manecas das Intentas, achou inteligente e corajoso inutilizar para a História os arquivos daquela sinistra casa ao deitá-los pela janela sobre a populaça que, na Rua da Misericórdia, rasgava os papéis e os pisava. Era o começo da delapidação do património de todos nós. Milhares de pessoas, muitas delas competentes e honestas, foram saneadas com uma selvajaria que só a inveja e o ódio podem explicar, e que era acirrado pela esquerda radical. Com a democracia na boca e serradura na cabeça, deitaram ao lixo um Império de 500 anos, sem honrarem Portugal e sem acautelarem as vidas dos povos das colónias e dos que lá viviam. Armados em Lenines de trazer por casa, destruíram todo o tecido agrícola do sul do país e grande parte do tecido industrial. Impantes, encheram as prisões através dum militar que passava mandados de captura em branco, ele que foi da Legião Portuguesa e choramingou ao pegar nas borlas do caixão de Salazar, um farsante. Muitos dos tropas de baixa patente que abandonaram quartéis e vergonha, nos últimos dias da presença portuguesa em África, vendiam haxixe descaradamente e até o cultivavam nas sua aldeias. Muitos outros, de alta patente, faziam farras em restaurantes de luxo, pagas pelos dinheiros públicos, e sacrificavam motoristas, em noites inteiras e frias, enquanto eles se divertiam em bares da moda. Bastantes, singraram em negócios. Apenas Salgueiro Maia, o militar que comendou a coluna que veio de Santarém e cercou o Quartel do Carmo, se manteve afastado da ganância e da política. Foi um puro. No lado civil, reinava a ambiguidade, que quase desorientou o povo, do relacionamento do PS com o PC, só interrompido por Salgado Zenha, em 1975, com grande entusiasmo geral do país, levando Mário Soares por arrastamento, enquanto Cunhal babava de ódio e mandava "partir os dentes à reação". Como se reagir à maldade e à estupidez não fosse um dever elementar!
Estava dado o mote para o que viria a acontecer nos anos que se seguiram. E nem se hesitou em tirar do caminho Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, homens sérios e dispostos a não confundir Democracia com bandalheira. Aos solavancos, entre lutas partidárias que fedem a milhares de quilómetros e dinheiros de Bruxelas, o regime tem vindo a dar uma no cravo e outra na ferradura. Algum progresso houve, mais aparente do que real, pois ninguém curou de alicerçar fosse o que fosse - como se pode verificar com os efeitos da crise económico-financeira mundial. O papel de embrulho é bonito e vistoso, mas o que lá está dentro é bem menos agradável.
Apesar de tudo, ainda há alguma liberdade. Mas, trinta e cinco anos depois da chamada Revolução dos Cravos, o balanço não é animador. Uma árvore conhece-se pelos frutos que dá. A árvore do 25 de Abril tem ramos mortos, alguns em vias disso, algumas raízes podres, muitos frutos sorvados. Manda o amor a Portugal, e o amor à Liberdade, que o povo pode essa árvore para que ela seja forte e dê frutos bons.
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